O ano era 2000 e o então vereador pelo PT, Ricardo Alvarez, escreveu um artigo sobre os chamados Carecas do ABC, uma gangue de skinheads de formação fascista que aterrorizava a região. 

Relendo o material, temos a impressão de que o texto foi escrito para os tempos atuais, quando parte da população brasileira, sob o lema “Deus, pátria e família” e guiada por um genocida de plantão, não demonstra qualquer empatia por aqueles que julgam diferentes. 

O artigo foi publicado na coluna Tribuna Livre, de 14 a 24 de fevereiro de 2000, do jornal Santo André Repórter após as discussões sobre o assassinato do jovem Edson Neris da Silva pelos Carecas na praça da República, em São Paulo. 

Reproduzimos abaixo a íntegra do texto em busca de reconhecimento do passado (e porque não também do presente) e na tentativa de evitar repetir os mesmos erros no futuro. 

Confira também a reprodução do jornal impresso AQUI.

Os carecas do ABC e do mundo

*Ricardo Alvarez

Quem gosta de viver na miséria, desempregado, assistindo à terrível cena da fome, ter o desespero como companhia? As pessoas têm o péssimo hábito de querer viver bem. Na busca de condições mais dignas de vida, a migração aparece, muitas vezes, como a única, ou melhor alternativa. Massas humanas se deslocam em todo mundo, tentando sobrepor esperança à humilhação. Há exemplos clássicos desta movimentação: africanos para a Europa, mexicanos para os Estados Unidos, asiáticos do Sudeste para o Japão. No Brasil, em que pesem outros fluxos migratórios importantes, milhões de nordestinos seguiram para o Sudeste, especialmente São Paulo, atendendo às necessidades de um sistema produtivo industrial que se consolidou a partir da metade deste século.

No modelo desenvolvimentista, erigido a partir da grande participação das transnacionais sob a tutela do Estado, as desigualdades na distribuição territorial e social da produção e da renda, não foram erro de percurso, mas é parte inerente ao processo em curso. Neste sentido, os brasileiros nordestinos não vieram a São Paulo movidos apenas por vontade pessoal, vieram cumprir o que a conjuntura lhes destinava: servir de mão-de-obra barata na expansão capitalista que se constituiu.

Nos anos 90, a ocorrência de mudanças profundas na estrutura e composição do capital produtivo, a abertura da economia, as privatizações e a política de juros altos, têm gerado a dispensa em massa de trabalhadores. O desemprego, a precarização das condições de trabalho, a expansão do trabalho informal atinge a cifra de milhões de trabalhadores. Muitos encontram respostas simplistas para problemas complexos como estes e enxergam em alguns grupos sociais a responsabilidade pela situação vigente. Identificar a culpa em negros, nordestinos, homossexuais, judeus e outros é achar que o sol gira em torno da Terra, a partir de uma constatação superficial, além de carregada de preconceitos.

A gravidade da situação é tão grande que muita gente, das mais variadas condições sociais, defende idéias deste tipo, mesmo sem usar coturno, suspensório, calça camuflada. Não andam por aí de taco de beisebol na mão, nem tampouco de cabeça raspada. Mas se aproximam, no campo das idéias, dos princípios racistas e xenófobos que estes grupos professam praticam.

Parece que as políticas de inclusão social, mais demoradas e graduais, perdem terreno para ações rápidas e imediatas de grupos organizados. Parece não importar se a política de extermínio e preconceito terá eficácia, pois o mais importante é divulgá-la e defendê-la. Vivemos um inconsciente coletivo, onde parcelas da sociedade não refletem sobre o que defendem, mas reproduzem com energia, palavras e idéias desprovidas de conteúdo, validade científica e comprovadamente reprovadas pela história humana como solução aos problemas contemporâneos. O assassinato de Edson Neris da Silva não apenas se perde nas cifras da violência urbana. Sua morte tem significado simbólico, como bem disse recentemente o sociólogo Túlio Kahn. 

Será mesmo que os homossexuais são os responsáveis pela propagação da Aids? Como se explica, então, o aumento da incidência da doença em mulheres com a transmissão pelo marido em casos extraconjugais? Será que os negros são violentos por determinação genética? Serão os nordestinos os culpados pelo desemprego? E os judeus? Hitler argumentava que a inflação astronômica na Alemanha da década de 30, acontecia por causa da ganância dos comerciantes em ganhar dinheiro às custas do povo. Quem estava atrás dos balcões das lojas? No mundo, por vezes, vence a ilusão da hipocrisia. Tão importante quanto agir com rigor no caso da condenação pública de pessoas que se julgam os parâmetros do bom comportamento é necessário estancar o crescimento no seio da sociedade, de ideais desta natureza. A cumplicidade é tão ou mais violenta que a própria ação destes grupos. Quem dera eles fossem apenas do ABC.

*Ricardo Alvarez é professor da Fundação Santo André e vereador pelo PT