A pergunta é provocativa e proposital.
O menosprezo de Bolsonaro pela vida, o culto à morte, o desdém pela dor alheia e o desrespeito com as vítimas de violência são frequentes e reincidentes. Os exemplos são muitos, transbordam, mas destaco recentemente o tratamento dado ao caso dos indigenistas desaparecidos e a maneira como ele negligenciou o enfrentamento da pandemia.
Seria ele uma pessoa má? Naturalmente perversa? Certamente sim, mas somente isso não dá conta de entender como um presidente da República é tão repugnante e, mesmo assim, ainda adorado por parcela expressiva da sociedade.
Primeiro é preciso observar que ele manifesta este comportamento basicamente com três grupos sociais: os opositores (esquerda, comunistas e desertores), os diversos (LGBT’s, PCD’s, contraventores, drogaditos, etc) e os mais vulneráveis. Esse é um importante ponto de partida. A maldade não é generalizada, tem público definido.
A explicação passa incialmente por sua verve conservadora, neoliberal e de extrema direita. Mas para além destes há outros elementos a serem observados. Um deles é bem simples e perpassa suas matrizes ideológicas: não há lugar no mundo para todo mundo. Direto e reto, qualquer um entende. Há muita gente disputando recursos escassos.
Mas há escassez no sistema produtor de mercadorias?
A reestruturação produtiva concentra novas tecnologias e a ultra qualificação dos trabalhadores em polos altamente produtivos, restritos territorialmente e localizados em pontos específicos do planeta. Produz-se muito e cada vez mais de forma concentrada. Os espaços de produção se reduziram, o emprego minguou e a riqueza se concentra cada vez mais.
As áreas de produção complementares se reconfiguraram e os centros dinâmicos se mudaram para a Ásia. Nosso país agoniza na produção industrial há décadas, trabalhadores se precarizam e a economia foi reprimarizada. O assassinato de Dom e Bruno representam mais um capítulo das disputas por riqueza no interior profundo, de onde sai nosso diferencial no mercado global: commodities de baixo valor agregado.
Num cenário de novos espaços de produção e financeirização da economia sobra pouco para quem está longe dos centros dinâmicos do capital. As alternativas do fascismo para estes dilemas são drásticas e contundentes.
Inicialmente é preciso reduzir os estoques de gente disponível (isso mesmo, estoque). Tem gente demais, superpopulação. Higienismo, encarceramento, esterilização em massa de mulheres, intensificação das guerras, genocídios, chacinas, ondas de fome, pandemias (olha ela aí), enfim, todos aqueles mecanismos que provocam mortes em massa, que exercem o papel de reguladoras demográficas.
Trata-se de uma versão repaginada do Malthusianismo apoiada numa matemática rasteira e já refutada: menos gente significa melhor qualidade de vida aos sobreviventes. Ingenuidade total, porém simples de ser digerido. Trata-se também de um diferencial em relação aos governos de direita anteriores.
Reparem como Bolsonaro e seu séquito se comportam diante dos episódios que envolvem mortes. A indiferença não é apenas maldade, é mais que isso, é uma concepção política de sociedade, é uma visão de mundo. É necropolítica no sentido mais preciso do termo.
Os “vencedores” na selva do vale tudo são merecedores da riqueza amealhada como prêmio pela competência. Os pobres, ao contrário, são exemplos de fracasso e falta de esforço (meritocracia) e seu extermínio é parte de um processo de seleção natural, ou darwinismo social. Isso não comove por ser encarado como uma necessidade.
O bolsonarismo nunca enxerga o andar de cima (riqueza concentrada) como problema, o alvo é a camada de baixo, entendida por eles como os que vão avançar sobre suas conquistas. No capitalismo isso é constante, porém a diferença é que na versão liberal isso se escamoteia via seletividade do mercado, já no fascismo os inimigos são identificados com maior evidência e devem sucumbir.
A depuração social transforma-se quase que numa necessidade primária, a luta de classes assume uma maior evidência. As elites tornam-se menos desavergonhadas em seus desejos higienistas e genocidas. O desejo sempre esteve lá, só que agora ele ganha o apoio do chefe do Estado. A tampa do esgoto foi aberta.
Observe-se que mesmo diante da barbárie social ele é aplaudido em encontros empresariais quando promete mais mercado e vocifera contra mulheres, pobres, indígenas e quilombolas. E assim ele vai energizando sua base política permanentemente.
Seus seguidores se sentem mais patriotas que o restante da população ao vestir uma camiseta verde amarela, bater em gays é aplicar corretivos necessários para comportamentos padronizados, postar nas redes que os 22 mortos na Vila Cruzeiro (RJ) eram meliantes e mereciam, portanto, morrer. Tudo muito simples e básico, resolvido numa canetada, ou melhor, numa postagem digital. Bater, machucar e matar.
Trata-se da mesma construção que justifica o genocídio dos povos originários. Dói menos se eles forem desumanizados. Hoje quem ocupa este posto no Brasil são os pretos e pobres das periferias urbanas, cuja narrativa de extermínio é frequente, persistente e insistente, tomando-os como bárbaros e desumanos.
O fato de um imbecil ser tratado como “mito” mostra que eventuais qualidades pessoais (inexistentes) são questões menores diante do trabalho de “limpeza social” que está em curso. A própria política de disseminação de armas e munição na sociedade é parte deste movimento. Se o Estado não consegue sozinho ele recorre aos “cidadãos de bem” nesta tarefa.
Por isso, se a resposta à questão de sua tirania e desprezo à vida se limitar à sua personalidade estaremos incorrendo em erro.
É bom lembrar que o fascismo no poder parte da condição de uma sociedade para alguns e não inclusiva e solidária para todos e todas, e o desafio é tentar entender por que ele é assim. Simples e complexo ao mesmo tempo.